terça-feira, outubro 03, 2006

O VERDADEIRO GIL VICENTE




Segunda e última parte

No fim da primeira parte, Mestre Gil ficou a saber que alguns dos grandes problemas do século XVI se arrastaram até aos nossos dias.

MO: Vejo que o Mestre está um pouco desapontado…

GV: É verdade. Não compreendo como um país, embora pequeno, não consiga aproveitar melhor as suas qualidades. Os governantes deviam ser mais assertivos nas decisões que tomam e mais rápidos também.

MO: Oh! Rápidos são! Ainda há pouco tempo, o ministro da Economia foi apanhado a 200 Km/h.

GV: 200 km/h? Quantos cavalos tem o veículo do ministro?

MO: Não percebo muito de mecânica, mas, sendo um topo de gama, terá algumas centenas de cavalos.

GV: Centenas de cavalos? Meu Deus!

MO: Não pense que é uma carruagem puxada por tantos cavalos. Os tempos mudaram e os veículos modernizaram-se. Apesar de se ter mantido a palavra cavalo, agora significa potência. Depois eu mostro-lhe um automóvel.

GV: Se ainda me lembro dos meus conhecimentos clássicos, automóvel indica algo que se move sozinho.

MO: Precisa de combustível e de ser conduzida, mas, sim, anda sozinho.

GV: Parece-me bruxedo!

MO: Não é bruxedo, é ciência. Aliás, actualmente, as bruxas preferem ser chamadas de astrólogas.

GV: Como?

MO: No fundo, é um eufemismo.

GV: Essa gente pouco temente a Deus! Aproveitam-se dos mais fracos de espírito para fazer fortuna. Vão todas pingar nas chamas da ilha perdida.

MO: O Mestre Gil leva mesmo a sério o caminho que a alma toma depois de o corpo morrer. Todavia, nem tudo vai mal neste país. Por exemplo, de dois em dois anos, há a festa do futebol.

GV: Começo a perceber que esse jogo é muito importante.
MO: Sem dúvida. O país pára quando há campeonatos da Europa e do Mundo.

GV: Por falar em mundo, já lhe foram descobertas todas as partes?

MO: Sim. Agora, que já não há mais que descobrir na Terra, o Homem anda em busca de novos planetas e, quem sabe, de novas formas de vida.

GV: É fenomenal a capacidade de inovação do ser humano. Voltando à festa do futebol, gostava de saber como se organizam os festejos no século XXI.

MO: O essencial, que são os comes e bebes, mantém-se. As ruas são enfeitadas com as cores nacionais, o vermelho e o verde. E a população junta-se, gritando e festejando pela noite dentro as vitórias da equipa de Portugal.

GV: No fundo, não me parece muito diferente daquelas que aconteciam no Paço. Pelos vistos, a alegria é intemporal. A única coisa que mudou foi as cores da bandeira. Não sei se gosto.

MO: A minha mãe, que é entendida nessas coisa do “chega a agulha e afasta o didal”, diz-me frequentemente em surdina que o verde não combina muito bem com o vermelho e que o amarelo, então, estraga tudo. Bem, gostos não se discutem. O facto é que a festa do futebol foi incentivada pelo treinador da equipa, um nativo da Terra de Vera Cruz.

GV: Não me espanta. Desde que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil… Se me permite uma inconfidência, há quem diga que D. Manuel I já sabia da existência dessas terras e que se estava na iminência de se conhecer um novo continente. Naquela época, os portugueses eram sabidos! Não eram como os castelhanos que acreditaram no parvo do Colombo quando ele disse que tinha chegado à Índia! Isto veio a propósito de quê?

MO: Ia a dizer qualquer coisa sobre a Terra de Vera Cruz…

GV: Ah, claro! Depois de ter lido a carta que Pêro Vaz de Caminha enviou a D. Manuel I, vi logo que aqueles indígenas eram danados para a brincadeira!

MO: A sério?

GV: Não leu? Tem lá textualmente que “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.”

MO: (risos) Boa, Mestre! Ainda está em forma! E assim chegamos ao fim desta agradável conversa. Mais uma vez obrigada por se ter disponibilizado a viajar no tempo.

GV: O prazer foi todo meu.

Depois deste diálogo, levei o Mestre a dar uma voltinha de carro. Nos primeiros minutos, esteve sempre bastante nervoso, pensava que tudo era obra do Demo e chegou a gritar umas quantas vezes “Aqui d’el rei!” Por fim, acabou por serenar quando se apercebeu que, tal como na sua época, os motoristas se insultavam, pensavam que eram óptimos condutores e que a culpa era sempre dos outros.
A grande conclusão a que se chegou, após cavaquear com Gil Vicente é que Gil Vicente não tem nada que ver com o que está a acontecer ao Gil Vicente.


Maria Ortigão

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