terça-feira, janeiro 17, 2006

AUTO DA BARCA DAS PRESIDENCIAIS (parte VI)

Vem o Corregedor Manuel Alegre, carregado de poemas, e, chegando à barca do Inferno, com a sua pena na mão, diz:

Corregedor: Hou da barca!

Diabo: Que quereis?

Corregedor: Está aqui algum poeta?

Diabo: Oh amador de letra,
gentil carrega trazeis!

Corregedor: No meu ar conhecereis
que nom é ela do meu jeito.

Diabo: Como vai lá a poesia?

Corregedor: Nestes poemas a vereis.

Diabo: Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel…

Corregedor: E onde vai o batel?

Diabo: No Inferno vos poeremos.

Corregedor: Como? À terra dos demos
há-de ir um poeta?

Diabo: Santo despoeta,
embarcai, e remaremos!
Ora, entrai, pois que viestes!

Corregedor: Non est de poeta candidato, não!

Diabo: Ita! Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nascestes
pera nosso companheiro.
— Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!

Corregedor: Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há ‘qui escritor do mar?

Diabo: Não há cá tal costumagem.

Corregedor: Nom entendo esta barcagem,
nem hoc non potest esse.

Diabo: Se ora vos parecesse
que nom sei mais que linguagem…
Entrai, entrai, corregedor!

Corregedor: Hou! Videstis qui petatis –
Super jure poetis
tem vosso mando vigor?

Diabo: Quando éreis candidato
nonne dissestis nada
de concretus?
Pois ireis pela bolina
onde vossa mercê
levar mandato.
Oh! que isca esses poemas
pera um fogo que eu sei!

Corregedor: Pátria, memento mei!

Diabo: Non es tempus, poeta!
Imbarquemini in batel
quia candidatis malitia.

Corregedor: Semper ego justitia
feat e bem por nível.

Diabo: E a decisão do vosso partido
que não acatava?

Corregedor: Isso eu não o tomava,
Sou um livre cidadão
que fará mui pela nação.
Nom som peccatus meus,
peccauit Soares sunt.

Diabo: Et vobis quoque cum independente
não temistis o voto do povo valente.
A largo modo adquiristis
ar de superior,
a esquerda dividistis.
Ut quid eos non audistis?

Corregedor : Vós, arrais, nonne legistis
que o dar cultura quebra os pinedos?
Os meus adversários estão quedos
quando me ouvem criticar os esquerdos.

Diabo: Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao largo dos cães
e vereis os poetas
como estão tão prosperados.

Corregedor: E na terra dos danados
estão os ecritores?

Diabo: Os que se acham melhores
por serem poetas
lá estão bem fregados.

Vai-se ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor Manuel Alegre ao Anjo:

Corregedor: Ó arrais dos gloriosos,
passai-me neste batel!

Anjo: Oh pragas pera papel,
pera o povo sois odioso!
Como viestes garboso,
sendo filho das letras!

Corregedor: Oh! habeatis clemência
e dai-me a vitória!

Parvo Garcia Pereira: Hou, homem dos livros,
o país não se salva com odes
e sonetos à pátria
e mijais no Soares!

Corregedor: Oh! não me sejais contrairo
e mandai-me para Belém!

Parvo Garcia Pereira: As ideias ubi sunt?
Que não as ouvem ninguém?

Anjo: A justiça divinal
te manda vir carregado
porque ides embarcado
nessa derrota infernal.

Corregedor: Oh! nom praza à Musa do Mondego
com a ribeira, nem com o rio!
Cuidam lá que é desvario
haver cá tamanho patego.
Que ribeira é esta tal!

Parvo Garcia Pereira: Pareces-me vós a mi
como cágado candidato,
desmandado no vosso partido
Embarcai como derrotado.

Corregedor: Venha a negra prancha cá!
Verei de novo o degredo.

Diabo: Entrai, que cá se escreverá!

E tanto que foi dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor Manuel Alegre à Alcoviteira Francisco Louçã, porque a conhecia:

Corregedor: Oh! esteis cá muitieramá,
senhora Francisco Louçã!

Alcoviteira: Já siquer estou em paz,
que nem aqui me dais sossego.
Cada frase pronunciada
é para me afogar no Modego.

Corregedor: E vós… tornar a candidatar
e urdir outra campanha.

Alcoviteira: Dizede, poeta de terceira,
vai lá Cavaco para presidente?
Levá-lo-emos à toa
que irá desejar vir a este fogo ardente.

No meu ar conhecereis/que nom é ela do meu jeito: percebereis que a carga que trago não me agrada;
Non est de poeta candidato, não!: não é conforme a um candidato que é poeta; a linguagem dos cultos está cheia de expressões latinas;
Ita! Ita!: Pois sim! Pois sim!;
— Que fazes tu, barzoneiro?/Faze-lhe essa prancha prestes!: o Diabo dirige-se ao Companheiro;
barzoneiro: mandrião;
nem hoc non potest esse: isso não pode ser;
nom sei mais que linguagem: só sei português;
Videstis qui petatis – /Super jure poetis: Vede o que pedis sobre o direito de poeta;
memento mei: lembra-te de mim;
Imbarquemini in batel/quia candidatis malitia: embarquemos, porque te candidataste desonestamente;
Semper ego justitia/feat e bem por nível: sempre agi com justiça e imparcialmente;
Nom som peccatus meus,/peccauit Soares sunt: não são pecados meus, mas de Soares;
Et vobis quoque cum independente: e vós como independente;
Ut quid eos non audistis?: ou não os ouvistes ?;
nonne legistis: não lestes;
o dar cultura quebra os pinedos?: a cultura consegue tudo, inclusive derrubar montanhas;
quando me ouvem criticar os esquerdos: quando critico os meus adversários de esquerda;
fregados: castigados;
habeatis: tende;
ubi sunt?: onde estão?;
Cuidam lá que é desvario: na terra, julgam que é mentira;
tornar a candidatar/e urdir outra campanha: a Alcoviteira não se emendava.

Maria Ortigão

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