terça-feira, agosto 16, 2005

RECORDANDO EÇA…



Não gostamos de celebrar a morte de ninguém, preferindo deixar os festejos para a data de nascimento. Apesar da inevitabilidade da perda do génio às mãos da mortalidade, sempre pensamos na sorte que nos foi propiciada pela sua passagem. Portanto, a melhor forma de homenagear Eça de Queirós no aniversário da sua morte é deixar aqui um pedaço da sua genialidade.


“A câmara municipal de Lisboa, diz-se, compenetrada da necessidade iniludível de melhorar as condições da cidade trata com toda a solicitude de fazer a aquisição - de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar - para completar a obra da regeneração municipal - araras do Brasil.
Respeitamos a câmara. Todavia, parece-nos discutível esta maneira zoológica de pôr alguma ordem na confusão do município. Porque não se nos figura lógico que a 300.000 habitantes - que pedem higiene, limpeza, ruas, polícia, iluminação, passeios – a câmara responda no seu zeloso cuidado - com um bicho dentro de uma jaula!
A cidade realmente, não oferece um aspecto próspero.
A iluminação é ligeiramente sepulcral: o gás, mostra-se inferior em seus serviços ao antigo candeeiro de latão; às vezes nas principais ruas, parte dos candeeiros repousam - apagados, e os que velam bocejam uma luz expirante.
Monturos de caliça e de pedregulho tomam das ruas um espaço abusivo: por­que se o entulho tem um certo direito a estar parado nas ruas vendo as senhoras que passam, parece que não deve pelo menos privar de igual regalia os habitantes que pagam décima.
As ruas, pela sua limpeza, mereceram de nós a designação mordente que lhes ficou - canos do avesso: as que são calçadas, com a chuva tomam o aspecto delicado de uma missanga de charcos: os macadames depois de se terem desfeito no verão numa atmosfera de pó fétido, apressam-se no inverno a reabilitar-se mostrando que são, como outra qualquer vereda, capazes de saber exercer a profissão de lameiro. A glória da capital, o Aterro*, a maravilha, é ladeado ao seu comprimento, de duas suaves circunstâncias: o cheiro da imundície dos canos; e o pó da houille* das fábricas, dando assim a perspectiva de uma sociedade gentil, rica e dandy * - que passeia, no aparato da riqueza e nos vagares do luxo - com a palma da mão sobrei boca e o lenço no nariz!
As obras que a câmara constrói são talvez excelentes: mas ela vai-as erguendo tanto em segredo, tão resguardadas das curiosidades ávidas, que muita gente supõe que a câmara abre as suas ruas, planta as suas árvores, alarga os seus passeios, limpa, areja, formoseia - na sala do concelho, debaixo da mesa, em sessão secreta!
(…)
Lisboa é a cidade mais suja da Europa: a própria Constantinopla, com o torpe desleixo turco, a própria Atenas, com a indolente miséria grega - são mais limpas. E se não fosse o Tejo, que lhe faz uma certa toilette, se não fosse um sol maravi­lhoso, que tudo alegra, doira, esbate - Lisboa, aqui ao canto, junto do mar, como um cano, seria a sentina da Europa.
E perante este estado o município penetrado da sua responsabilidade, e resolvi­do a dotar a cidade de condições habitáveis - o que lhe dá? - Um leopardo.
Ora confessemo-lo: é talvez interessante, mas não é excessivamente prático estefacto:
A fera em substituição da obra pública.
Porque a verdade é que quando se expuser, convincentemente à câmara, que a cidade de noite está escura, - a câmara não pode em sua honra - em vez de mais gás, adquirir mais leões: pelo menos é estranho, que reclamando os habitantes da rua de tal, mais um candeeiro - a câmara lhes envie um crocodilo!
Não queremos mal às feras: e quanto mais conhecemos os homens mansos, mais estimamos os bichos bravos.
(…)
A câmara na sua inteligência deve compreender que:
O bicho não é inteiramente o equivalente do edifício.
Nunca a câmara viu por exemplo S. M. El-rei passar a rua a cavalo no banco ultramarino! Portanto não é justo que nas praças, em lugar de dar ao habitante fatiga­do o assento de um banco de pau - se lhe ofereça o dorso de um rinoceronte
Porque deste modo toda a cidade seria em breve mordida - pelos melhoramen­tos municipais. Seria desagradável que os jornais noticiassem: «Ontem, a última obra em construção, devorou, na rua nova da Palma, uma criança de cinco anos: via-se depois aquele impudico melhoramento público, lamber os beiços, de regalado...»
Que a câmara medite e se lembre - porque a sua inteligência é para muito - que se ela der o exemplo funesto de substituir as construções pelas feras - pode levar o habitante a substituir as feras pelas instituições. E no dia seguinte àquele em que a câmara para mandar abrir um chafariz, comprar, em substituição, um elefante - qual­quer sujeito, em vez de dizer ao criado:
- Ó António, põe o selim no russo... pode esquecer-se a ponto de gritar:
-Ó António, aparelha a câmara.
O que seria de um real mau gosto, e prejudicaria os interesses constitucionais!”
Aterro*: local ocupado hoje pela Avenida 24 de Julho, em Lisboa.
houille* : carvão de pedra.
dandy * : peralta.

As Farpas, coordenação de Maria Filomena Mónica, Pricipia

2 comentários:

MRA disse...

E o tempo passa, mas não parece andar!

"História de Lisboa"
Autor: Couto, Dejanirah

Se calhar já leram este livro, mas é fantástico e faz-nos perceber que afinal já somos assim há muito muito tempo...

Obrigado pelo vosso blog, é óptimo!

Maria Ortigão e Manuela Queirós disse...

De onde apareceu esta coisa toda em inglês?
Não interessa... MRA, obrigada pelo elogio. Apesar da demora, tenho dado uma vista de olhos pelo seu "blog" e gosto da poesia.
Quanto ao livro, ainda não o li, mas já passei por ele nas livrarias. Quem sabe, em breve o poderei ler.
Obrigada, mais uma vez, pela sua participação.

Maria