Após as últimas notícias que abalaram a sociedade portuguesa, resolvi ir ao encontro de quem tanto se fala – o próprio Gil Vicente. Não fui à procura de respostas para o caso Mateus nem estou interessada em saber quem tem razão. Limitei-me a trocar umas ideias com aquela grande figura da história e da literatura portuguesas.
Maria Ortigão: Mestre Gil, muito obrigada por nos ter dado a honra da sua presença.
Gil Vicente: Ora essa! Muito me apraz viajar no tempo. Além disso, há uns anos, fui entrevistado por José Jorge Letria…
MO: Uma entrevista que deu um belíssimo livro, “Conversa com Gil Vicente”.
GV: Pois foi! Por isso, resolvi voltar.
MO: Sabe que, hoje em dia, todos falam de si?
GV: Sinto-me emocionado por atestar que, depois de tantos séculos, as minhas obras ainda são lidas!
MO: Lamento dizer-lhe que as gentes portuguesas estão mais interessadas em seguir as desventuras de Floribella do que em ler os seus escritos.
GV: Esse nome não me é estranho! Ah, já me lembro! O José Jorge Letria mostrou-me alguma poesia do século XX e agradei-me dessa Floribella Espanca.
MO: (risos) Está a fazer confusão, Mestre! Se bem que a Floribella devia ser espancada por ser uma das causas da estupidificação da juventude portuguesa.
GV: Não estou a perceber…
MO: Esqueça a Floribella. Há uma equipa de futebol que se chama Gil Vicente e que está a provocar muita confusão…
GV: O que é futebol?
MO: É um jogo que foi inventado pelos ingleses. Defrontam-se duas equipas de onze jogadores e ganha aquela que conseguir introduzir mais vezes uma bola por entre os dois postes adversários. Só se pode jogar com os membros inferiores, tronco e cabeça.
GV: Que jogo estranho! Mas confesso que quase só percebo de teatro.
MO: Modéstia a sua. Dizem à boca pequena que foi mestre da balança da Casa da Moeda, um notável ourives e organizador das festas palacianas.
GV: Diz-se muita coisa… Sem dúvida que o teatro é a minha grande paixão.
MO: Ficaria espantado se soubesse a quantidade de teatro que os jogadores de futebol fazem. O melhor actor é, sem dúvida, João Pinto.
GV: Bons actores é muito difícil de se encontrar.
MO: E entre os dirigentes de futebol encontraria excelentes farsantes!
GV: Soa-me a ironia e de ironia percebo eu.
MO: É a mais pura das realidades.
GV: Então, o que aconteceu à equipa que tem o meu nome?
MO: Por problemas que teve na utilização de um jogador, foi condenada a entrar na barca do Inferno, ou seja, a descer de escalão.
GV: Que lástima! Depreendo que devia ter pelejado sob a cruz de Cristo.
MO: A cruz de Cristo é o símbolo do Belenenses, outra equipa metida nesta confusão.
GV: Belenenses? De Belém? De onde saíram as caravelas em busca de novos mundos?
MO: Sim, é dessa zona.
GV: Oh, grandiosos tempos! Os nossos marinheiros eram os mais valentes, descobrimos o Brasil…
MO: Achámos. Agora, diz-se achamento do Brasil.
GV: Chegámos até à Índia por mar; Lisboa fervilhava de actividade comercial; éramos das nações mais ricas do mundo!
MO: Tempos muito longínquos!
GV: Mas também havia problemas. Por exemplo, o número de frades dissolutos era elevadíssimo!
MO: Entre frades e leigos, temos o processo Casa Pia.
GV: A corrupção era prática corrente nos cargos administrativos.
MO: Desde o século XVI, os portugueses aperfeiçoaram-se bastante nessa arte: Apito Dourado, Saco Azul…
GV: Os ricos estavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
MO: Há coisas que nunca mudam.
Fim da primeira parte.
Maria Ortigão